A extracção de areia no rio Cavaco, em Benguela, envolve, sobretudo, mulheres e crianças que diariamente lutam pela sobrevivência, por uma côdea de pão para ‘forrar’ os seus estômagos. Numa das margens desse rio intermitente, os moradores da Calomanga depositam o lixo que, na época chuvosa, é arrastado para o mar, com todas as consequências negativas daí decorrentes para o ecossistema. Os cavalos procuram pela lixeira, por falta de áreas de pasto, numa disputa com os humanos, cães e ratos.
● ILÍDIO MANUEL (textos) ● EDSON FORTES (fotos)
O célebre poema do dramaturgo, poeta e encenador alemão Freidrich Brecht assenta como uma luva ao fenómeno que se regista no rio Cavaco: “Do rio que tudo arrasta se/diz que é violento/mas ninguém diz violentas as/ margens que o comprimem”.
As sistemáticas agressões humanas ao ecossistema, por via dos resíduos sólidos lançados ao rio ou deixados nas suas margens, aliadas à exploração irracional de inertes e à falta de desassoreamento do seu leito, trouxeram consequências negativas para o Cavaco. De tão comprimidas e oprimidas, as margens do rio sofreram, nestes últimos 40 anos, um alargamento de 60 para os actuais 200 metros, tendo levado ao desaparecimento da cintura verde que antes existia nas suas bordas.
No leito arenoso do Cavaco, um rio que nasce no Bocoio, município do Cubal, que corre em direcção ao mar, homens, mulheres e crianças extraem areia para a sua comercialização. Eles vivem um dia de cada vez, ou melhor, em função dos resultados das vendas do inerte, o que nem sempre acontece. “Depende da sorte. Há dias em que não vendemos e ficámos sem comer”, queixa-se uma das vendedoras de areia que tem sido usada na construção civil.
Por esta altura do ano, o Cavaco é um rio seco e pacífico, devido à falta de chuvas que tardam a cair, um mês depois do fim da época de cacimbo.
Intermitente e sinuoso, o rio serpenteia entre vales e montanhas, numa distância de 125 quilómetros, desde a fonte até à foz, na Baía das Vacas, em Benguela, onde desaparece, engolido pela imensidão das águas salgadas do Atlântico.
Na margem direita do Cavaco, mais concretamente no bairro Calomanga, à saída de Benguela em direcção ao município da Catumbela, há vários amontoados de areia à espera de clientes, assim como acumulados de lixo, que são diariamente depositados pelos moradores daquela circunscrição benguelense.
Dobradas pela cintura, com auxílio de pás, mulheres e crianças, muitas das quais de tenra idade, enchem bacias e outros recipientes de areia que depois transportam à cabeça até à margem do rio. Muitas dessas crianças nunca co[1]nheceram o aconchego de um banco escolar ou, se o conheceram, viram-se forçadas a abandoná-lo por falta de recursos financeiros dos pais.
Ana Paula, 66 anos, 24 dos quais dedicados à extracção de areia, confessa que já não tem forças que lhe permitem acarretar os inertes. Vergada ao ‘peso’ da idade, recorda, com tristeza estampada no rosto, a vida difícil por que passou, sobretudo na época chuvosa, quando mergulhava no leito do rio.
Mãe de sete, dos quais só dois sobreviveram, Ana viu-se ‘obrigada’ a ganhar a vida no leito do Cavaco, pouco tempo depois da morte do seu companheiro.
Diz que, no seu tempo, o Cavaco não era seco, mas um rio vivo, alimentado de for[1]ma permanente a partir de uma barragem a montante.
Apesar dos riscos que resultavam da extracção de areia no tempo chuvoso, Ana não se lembra de alguém que tivesse sucumbido por afogamento. Hoje, sem forças para acarretar os inertes do rio, sobrevive da ajuda das suas filhas e da agricultura que pratica no leito do Cavaco.
Ana aponta para uma pequena plantação à sua frente, onde cultiva milho e hortofrutícolas. Não lamenta apenas a perda dos seus cultivos quando o rio se enche das águas das chuvas, mas também dos larápios que, na calada da noite, roubam os produtos da sua horta.
À pergunta se alguma vez tinha sido abordada pelo programa do Kwenda, a mulher responde “não”, ao mesmo tempo que meneia a cabeça em sinal de negação.
Para ela, o Kwenda estará mais virado para as pessoas que vivem no meio rural, em detrimento das que habitam as zonas periurbanas das cidades. O garimpo de areia não envolve apenas as progenitoras, mas também os seus ‘rebentos’, sendo os casos mais comoventes de Adelina Manuel, de 9 anos, e da sua irmã Joana, de sete anos.
A mãe dessas duas crianças, que não se quis identificar, carregava às costas uma bebé de dois anos, cujo futuro poderá não ser também risonho.
Muitas das crianças nunca conheceram o aconchego de um banco escolar ou, se o conheceram, viram-se forçadas a abandoná-lo
As duas irmãs nunca frequentaram uma escola, porque a mãe não tem recursos financeiros para suportar os seus estudos, como a própria reconheceu.
À conversa com a nossa reportagem, Adelina confessa que ela e a irmã muito gostariam de “ir à escola para aprender a ler, escrever e fazer contas”.
Com a ajuda de uma filha, de 11 anos, Joana Chilombo, 35 anos, peneira a areia depois de extraí-la do leito do rio. Ganha 10 mil kwanzas por cada carrada que vende aos motociclos de três rodas, vulgo ‘caleluias’.
Joana diz que vende areia refinada para ajudar o seu marido a fazer face às despesas escolares dos seus cinco filhos.
À semelhança das demais mulheres que um dia deixaram os seus municípios do interior em busca de melhores condições de vida nos centros urbanos, viu-se forçada a arranjar meios para a sobrevivência no leito seco do Cavaco.
Diz que não beneficia do Kwenda, pelo que aproveita a ocasião para apelar a quem de direito para tornar o programa social mais inclusivo.
Armando Saungo, 30 anos, é pedreiro de profissão, mas, devido à falta de trabalho no seu ramo, optou pelo negócio dos inertes. Na altura em que o abordámos, acabava de juntar um monte de areia para ser transportado até à margem do rio.
“Quando não tenho trabalho na pedreira, vendo areia ou ajudo a carregar os camiões. Ganho pouco, mas é sempre melhor do que ir roubar”, confessa Armando, que tem mulher e dois filhos por sustentar.
Diz que tem a 9.ª classe e que, por falta de capacidade financeira, não conseguiu dar continuidade aos seus estudos.
O jovem pedreiro emprestado ao garimpo de inertes lamenta a falta de um centro de saúde na Calomanga, o que tem obrigado, segundo ele, os moradores a deslocar-se a vários quilómetros até ao bairro da Fronteira.
“O Cavaco ‘dá de comer’ às várias famílias que têm na extracção de areia o único meio de sobrevivência, sobretudo as mulheres, cuja maioria exerce o duplo papel de mãe e pai”, diz Correia Armando, 53 anos, coordenador do bairro Calomanga, quando abordado pela nossa reportagem, no seu modesto gabinete de trabalho, próximo do rio Cavaco.
De acordo com o responsável, a extracção de areia não só ajuda os jovens a atenuar os efeitos dos desemprego, como também a afastá-los da delinquência. “Há muitos jovens que consumem bebidas alcoólicas para depois envolverem-se em brigas violentas”, adverte o coordenador, que é, igualmente, agente policial.
Questionado sobre o depósito de lixo numa das margens do rio, Correia Armando lamenta que isso esteja a acontecer, mas garante que a administração e o soba do bairro têm procurado sensibilizar os moradores sobre os perigos que isso representa para a saúde humana e para o meio ambiente, já que os resíduos sólidos em época chuvosa são arrastados para o mar.
Considera a falta de empregos, de centros de saúde, escolas e o vandalismo os principais problemas que afligem a Calomanga.
Calomanga Não só de areia vivem os moradores
Segundo fontes convergentes, o nível de água do Cavaco sobe significativamente durante as chuvas, ou seja, entre Setembro e Abril.
Antigamente, durante o período colonial, os tugas fizeram que o rio tivesse um curso de água permanente, o que permitia a produção de alimentos nas suas margens, sobretudo da banana, uma boa parte da qual era destinada à exportação.
Conta-se que a fruta era produzida pelos presos que cumpriam penas em regime aberto no estabelecimento prisional do Cavaco, que ‘terá bebido’ o nome ao rio. Júlio Tonecas, um estudioso angolano que se afeiçoou ao Cavaco, tendo defendi[1]do uma dissertação de mestrado sobre o rio pela Universidade portuguesa de Coimbra, afirma que “na era colonial, para resolver o problema da torrencialidade [intermitência] do rio que frequentemente causa inundações e a destruição de plantações marginais, contava-se com a Barragem do Ndungo, construída sobre o rio Cubal da Hanha. Essa barragem é composta por uma albufeira de 57 hm³, da qual se procedia à transferência (transvase) do caudal de 5 m³/S para o rio Cavaco”.
Revela que as águas vindas do interior da província de Benguela, em grande velo[1]cidade, arrastavam tudo quanto encontravam no seu percurso. O fluxo de água do Cavaco carrega (va) consigo um grande volume de material sólido que provocava o assoreamento do canal, favorecendo cheias e inundações.
Dados obtidos pelo estudioso dão conta e o rio Cavaco tinha, até 1983, uma largura de 50 a 60 metros, mas que viria a aumentar para os actuais 200 metros de largura, fruto das cheias cíclicas que ocorrem nesta bacia hidrográfica.
Pelo que foi possível apurar no terreno desde há muito, não têm sido feitos trabalhos de desassoreamento do rio que consiste na retirada das areias, a fim de permitirem a livre passagem das águas.
As mulheres da Calomanga não vivem apenas da venda da areia, mas também da lavagem de roupas, obtendo a água a partir dos lençóis freáticos do rio por um processo de escavação, uma espécie de cacimba.
Elas são, maioritariamente, provenientes dos municípios do interior de Benguela, que, um dia, abandonaram em direcção à cidade capital das Acácias Rubras, na vã esperança de alcançarem o ‘El dourado’, uma aventura que, na maior parte dos casos, se revelou inglória e fracassada.
Aos 53 anos, Moisés Correia tem motivos de sobra para se queixar da vida, uma vida amarga, penosa e uma história triste por contar.
Encontrámo-lo no leito seco do rio onde procedia à lavagem de garrafas de plástico que se destinavam à venda de petróleo. Fez uma escavação no rio por onde escapava uma pequena quantidade de água. Vende os pequenos recipientes às ‘mulheres do petróleo’, três garrafitas por 10 Kz. Perdeu a conta do número de garrafas que recolhe do lixo e lava diariamente, mas sabe que ganha qualquer coisa entre os 300 e os 500 Kz diários.
Conta que já trabalhou como ajudante de mecânico, mas “não deu certo”. Já foi militar da extinta FAPLA, no tempo da guerra civil, e chegou a fazer parte da conhecida escolta ‘Pula-Pula’, que dava protecção às colunas de viaturas civis que levavam alimentos e víveres para diversos pontos do País.
«O Cavaco ‘dá de comer’ às várias famílias que têm na extracção de areia o único meio de sobrevivência, sobretudo as mulheres»
O antigo militar das forças governa[1]mentais confessa que não recebe uma pensão da Caixa Social das FAA, porque desertara do exército e não tem como provar que andara na guerra. É pai de sete, mas nenhum deles o apoia nesta fase difícil do ‘campeonato’ e na nesta curva derradeira da vida, de uma senilidade desprotegida.
Diz-se disponível para fazer qualquer tipo de trabalho, como segurança privado ou mesmo serviço braçal numa fazenda agrícola.