Mulheres da Catumbela: uma vida dura como as pedras que extraem das montanhas

A vida tem-lhes sido tão dura quanto as pedras que diariamente extraem à força do trabalho braçal e dos objectos contundentes das montanhas poeirentas do município da Catumbela, na província de Benguela.

O trabalho, antes reservado aos homens, másculos, agora é também feito por “mulheres do povo”, na sua maioria vindas dos municípios e aldeias do interior de Benguela; mulheres geradoras de numerosas proles que vivem abaixo da linha da pobreza.

 

Ilídio Manuel (Textos). Edson Fortes (Fotos)

Do corpo franzino de Angelina Cavalo, 41 anos, precocemente envelhecido pelas agruras da vida e pelos sucessivos partos, emerge uma força interior que derruba maciços de pedra e vence os escolhos que diariamente se lhe atravessam pelos caminhos íngremes da vida.

Começa o trabalho duro e pesado no sopé da montanha às primeiras horas do dia até ao pôr-do-sol. Mãe de doze filhos, dois dos quais já falecidos, a mulher que um dia abandonou o município do Bocoio e partiu em busca da vida num dos maiores centros urbanos do país, não virou costas a luta, um combate que trava todos os dias, em companhia do marido, para dar de comer aos filhos.

Apesar das contingências da vida, Angelina conserva ainda os traços de uma beleza natural, a modéstia e a bonomia que o tempo não conseguiu apagar.

Chega-se às montanhas de pedras na comuna da Gama por via de um caminho bastante poeirento, sinuoso e íngreme, de aproximadamente três quilómetros contados a partir do asfalto da estrada que liga o município da Catumbela ao seu congénere do Lobito. Devido às adversidades do terreno, apenas as viaturas de tracção às 4 rodas, conseguem atingir àquela espaço, seco e inóspito. “ Não basta ter um bom Jeep, mas também os travões em dia”, adverte o administrador adjunto da Catumbela para a área Técnica, Infra-estruturas e Serviços Comunitários, Arlindo Bonifácio Candolo, que faz questão de nos acompanhar nessa deslocação.

De facto, só um veículo em boas condições técnicas, sobretudo com os travões afinados, podia aventurar-se em escalar aquelas montanhas onde se procedia à extracção de inertes por meios rudimentares, sem qualquer tipo de recurso às máquinas. “ Uma falha pode trazer consequências graves”, atira Edson Fortes, o repórter de imagem que nos acompanha.

A guerra civil que, em 2000, assolava o país, em particular o Bocoio, o chão natal de Angelina, obrigou-a a procurar um porto seguro, na companhia do seu marido, Domingos Baptista Toloca, 45 anos.

Por falta de meios de trabalho, o casal viu-se obrigado a procurar meios de sobrevivência, mais concretamente o garimpo de pedras que extrai das montanhas com recurso à força dos braços, picaretas e alavancas.

Envoltos num manto de poeira de cor embranquecida, homens (poucos), várias mulheres e uitas crianças juntam montes de pedras grandes e pequenas. As últimas são uma espécie de cascalho, que não tem nenhum valor comercial. Por analogia e alguma ironia à mistura dir-se-ia que as pedras grandes seriam os diamantes…

Domingos Toloca nasceu no Lobito, mais concretamente no bairro de S. João, tendo em 1992 ido viver para o município do Bocoio, e regressado anos mais tarde à sua terra natal.

Há mais de 15 anos que se dedica à extracção de pedras. “ Não tinha emprego e o meu tio, com medo que eu virasse gatuno, levou-me para as montanhas para `cavar` pedras”, um trabalho que, com a ajuda, da mulher lhe permite sustentar a vasta descendência.

Perfeitamente consciente da natureza do trabalho que desenvolve reconhece que a extracção de pedras, sem meios de protecção e segurança, constitui um “grande risco para a saúde humana” e que lhe têm causado “ grandes dores na coluna”.

Além dos danos físicos, chama a atenção para o perigo dos répteis, sobretudo as cobras que se escondem no meio do cascalho.

Quando doente, diz que, para além da falta de dinheiro, não tem por perto nenhum centro de saúde ou unidade hospitalar onde possa receber um tratamento gratuito. Confessa que tem aliviado as dores que lhe atormentam o corpo com a toma de “um paracetamol”.

Revela que ganha com a venda de pedras cerca de 12 mil Kwanzas/ mês. “ O pouco que ganho é para dar de comer aos filhos e para a compra do seu material escolar”.

À reportagem do Novo Jornal não se queixou apenas das condições de más condições de trabalho, como também da falta de água. Segundo ele, a pouca água que consegue acumular tem sido destinada à confecção dos alimentos. «Não tenho condições para banhar e vou para a cama nestas condições que me encontro».

Qualquer observador dá conta a olho nu que as crianças e adultos estão há muito sem o precioso líquido para lavagem de roupa ou mesmo para tratar de questões de higiene pessoal.

Questionado sobre o “Kwenda”, Domingos Toloca diz que já ouviu falar da existência desse programa nos municípios do Chongori e Caimbambo, mas que não tem esperança de um dia beneficiar do mesmo.

À pergunta por que razão não apostara na prática da agricultura, respondeu que vontade não lhe faltava, mas que não dispunha de terra para cultivar. Mostrou-se, porém, disponível para fazer outro tipo de trabalho “menos duro” onde pudesse ganhar mais, “45 mil Kwanzas seria bom”, sonha.  

Alice Soli, 42 anos, mãe de 5 filhos, abandonou o Chongori, sua terra natal, em 2008 para fazer negócio no município sede de Benguela, mas confessa que o negócio não lhe correu como esperava.

Sem meios de subsistência, não teve outra saída, senão subir à montanha da Gama, onde se dedica à extracção de pedras para a sua sobrevivência. Com o pouco que ganha como resultado do seu trabalho, diz que ajuda o marido a alimentar os filhos e custear os estudos no município do Lobito.

Queixa-se igualmente da dureza do trabalho e dos perigos que o mesmo acarreta, sobretudo no tempo chuvoso quando se registam o deslizamento de terras.

Conta que no princípio foi “ muito difícil” escavar as pedras grandes com recurso às picaretas, marretas e alavancas.

Queixa-se igualmente da falta de água e dos preços praticados na venda do precioso líquido. Diz que compra o bidão de 20 litros por 75 Kwanzas cada e que água comprada “ só dá para cozinhar”.

Sobre o Kwenda, afirma que nunca recebeu nada desse programa governamental de apoio às famílias mais carenciadas, e tem poucas esperanças de vir a beneficiar.

Alice revela que muito gostaria de fazer agricultura caso tivesse um terreno disponível para cultivar, tal como fazia no “seu” distante Chongoroi; uma terra para a qual já não tenciona regressar “ tão cedo”, segundo a interlocutora do NJ.

 

Dos bancos de areia ao garimpo de inertes

Crianças jogam à bola no leito do rio majestoso Catumbela

 

No leito do majestoso Catumbela, o rio que atravessa o município com o mesmo nome, há bancos de areia devido à falta de chuvas.

Os moradores do bairro Namano dizem que a ausência de chuvas é a melhor época para os garimpeiros de areia e os petizes divertirem-se, dando largas à sua imaginação.

Se, por um lado, a estiagem facilita a extracção de inertes e a sua comercialização, por outro, penaliza seriamente os habitantes da Catumbela, Lobito, Benguela sede e Baía Farta, que se abastecem dá água do rio.

Sobre as areias macias do leito do Catumbela há crianças que jogam à bola, correm soltas de uma ponta a outra num improvisado campo de futebol. É também nesses espaços onde as mulheres, de pá na mão, enchem bacias e outros recipientes, que são depois transportados para a margem do rio, ou para a “montra”, como elas próprias dizem.  

Nos espaços mais baixos do rio, onde a água não foi engolida pelas areias, há crianças que praticam a natação, mergulham descontraídas, dão pinos de felicidade e mostram as suas habilidades aquáticas.

Nesta época de estiagem, a relação homem/rio seria perfeita não fosse as visitas inesperadas que os jacarés fazem espaçadamente e surpreendem os “intrusos” que se aventuram a banhar nas águas do Catumbela ou a extrair inertes no seu leito. Há relatos assustadores de ataques de sáurios que culminaram em amputações de membros, sobretudo inferiores, ou, no pior dos cenários, de mortes causadas por esses animais anfíbios.

Isabel Noloti, 52 anos, 30 dos quais dedicados à extracção de areias no rio, recorda, com tristeza, as mortes de pessoas que acabaram vítimas dos ataques dos jacarés no rio Catumbela.
Mãe de 10 filhos, com idades compreendidas entre os 8 e os 20 anos, diz que todos eles deixaram de ir à escola por ela e o marido desempregado não terem como suportar os estudos dos filhos.

Isabel diz que já ouviu falar do Kwenda e que aguarda que um dia venha a ser contemplada pelo referido programa. Acredita que caso vivesse no “mato” já estaria a beneficiar desse programa governamental de mitigação dos efeitos da pobreza. “ Nós, aqui, somos também muitos pobres e não temos nada para viver. Há dias que ficamos sem comer”, queixa-se.

Por sua vez, Constantina José, 44 anos, mãe de seis filhos, que vive igualmente do garimpo de areia, diz que há dias que não tem nada para comer nem para dar aos filhos por não conseguir vender o que tem na sua “montra”.

Questionadas por que não enveredaram para a prática da agricultura, em vez de viverem da incerteza do garimpo de inertes, as mulheres do bairro Namano lamentam o facto de não possuírem terras disponíveis onde possam praticar a agricultura.

Fernando Catangue, 55 anos, soba da referida circunscrição, reconhece que o negócio da areia na margem do rio Catumbela tem ajudado às famílias mais pobres, e que os jovens devido aos elevados índices de desemprego não têm encontrado outra saída, senão o garimpo de inertes.  

Questionado sobre o impacto do PIIM, revelou que o mesmo permitiu a construção de uma escola com sete salas e um posto de Saúde no bairro.

Segundo ele, a falta de terras aráveis e de dinheiro têm condicionado a vida dos habitantes que procuraram encontrar na agricultura um meio de sobrevivência.

Fernando Catangue revelou que houve algumas melhorias na área sob sua jurisdição, com o abastecimento de água potável e energia eléctrica aos moradores, “ 24 sobre 24 horas”, na modalidade de pré-pago.

Alguns populares ouvidos pela reportagem do NJ admitiram que não dispunham de energia eléctrica porque, segundo eles, não tinham como pagar os consumos.

Em relação ao Kwenda, o soba diz que estão a ser feitos esforços no sentido de torna-lo mais abrangente, de forma que as “ famílias mais pobres sejam também beneficiárias do programa de combate à pobreza”.

Para eles, não existe a refeição do dia, mas o dia da refeição. «Quando calha», confessa a mulher.

O «desemprego» causado pelo encerramento do mercado do Roque Santeiro, onde vendia refeições, atirou-a para aquelas paragens, para aquele local inóspito, onde esta manhã travamos dois dedos de conversa. Apesar das altas temperaturas que se faziam sentir, Sofia não se deixou abater pelo sol abrasador que Caia de forma inclemente, empunhando ora picareta, ora a marreta.