Benguela – Mulheres de “pedra e cal” na luta pela sobrevivência

São às dezenas as mulheres inconformadas com o espectro de pobreza. No negócio dos inertes, somente para enganar a fome, tudo fazem para sobreviver

João Marcos e Gabriela Tavira (textos e fotos)

O semblante de Joana Sabina, 41 anos de idade, esconde o sentimento de frustração que, indiscutivelmente, toma conta de quem perde o emprego, e logo na função pública, o sector que alimenta o sonho de milhares de angolanos à espera dos prometidos 500 mil postos de trabalho.

Afastada do Hospital Municipal de Benguela na sequência de conflitos laborais que colocaram vários enfermeiros no desemprego, há quatro anos, Sabina cedo percebeu que seria inútil andar de lamúrias em lamúrias.

Assim é que, alegre, está na periferia da cidade das “Acácias Rubras”, ao lado de dezenas de mulheres, na venda de pedras, areia e brita, três produtos que os cidadãos adeptos da auto-construção dirigida não dispensam.

A técnica de saúde “emprestada” à venda de inertes é uma mulher aparentemente alegre não porque o negócio dê altos rendimentos, mas  pela necessidade de sobrevivência. “Vendo areia e brita, mas nem sempre temos clientes, o dinheiro dá para um bocadinho, só para comprar alimentos”, diz a senhora, que vê na comparticipação do marido nos gastos com a escola dos filhos “um grande alívio”.

À semelhança das colegas, faz mais de dez horas diárias, entre as 6 e as 17, ciente de que “há dias sem clientes”.

Como que a confirmar esta versão, a mais velha Teresa Ndjaúca considera que a actividade não é rentável para quem aplica 12 mil Kwanzas num camião de areia e 25 mil na aquisição de brita, dois inertes extraídos na “Mina”, uma área que fica a alguns quilómetros do local de venda.

Ndjaúca, há um ano nesta empreitada, conta que as mulheres são obrigadas a juntar dinheiro para “pegar o negócio”, do qual conseguem lucros nunca superiores a cinco mil Kwanzas.

“Vendemos a areia a 1.200 Kwanzas o monte, a brita um pouco mais, mas isto não dá para nada, continuamos pobres e a pensar em desistir”, confessa a cidadã, mãe de quatro filhos.

Também Joana Cassinda, auxiliada pela filha na venda deste material, afirma que o dinheiro quase não chega para nada, nem para duas ou três refeições em dias consecutivos. “Às vezes, não há o que comer, estamos a passar mal, muito mal mesmo”, lamenta.

Convivência com homens e oportunidade para motoqueiros 

O lucro, como pudemos acompanhar, não é famoso, mas suficiente para pagar os 500 Kwanzas à Administração Municipal de Benguela (AMB), que cobra pelo espaço que as vendedoras ocupam.

Cada uma paga o “imposto” duas vezes por semana, sublinham as senhoras, que não puderam, contudo, falar do destino do dinheiro cobrado pelos fiscais da AMB. “Quem não entrega o dinheiro pode perder este lugar”, dizem as nossas interlocutoras.

Trata-se de uma curiosidade digna de realce, tendo em conta que, num passado recente, os relatos apontavam para um ambiente de crispação, em outros pontos da província, entre as mulheres e as autoridades.

Não menos relevante é o facto de as mulheres estarem a dividir o espaço com alguns homens, como são os casos de Henrique Almeida Santos, ex-militar, e José Saraiva.

O primeiro, já com dez anos de venda, sublinha que a carência o levou para este negócio onde coabita com senhoras.

De acordo com Almeida Santos, a falta de emprego, aliada à fome, determina “o sofrimento nas pás, na areia e nas britas”.

À espreita, até mesmo das movimentações da nossa reportagem, está o cidadão José Caley, um dos vários motoqueiros que têm na actividade das mulheres uma boa oportunidade de negócio.

Com a sua “caleluya” – motorizada com carroçaria -, ele transporta os inertes até às obras dos clientes. “Fazemos os carregamentos, cobrando 500 a 1000 mil Kwanzas, e dá apenas para levar fuba e pão para casa. Um peixe para as crianças, só isso”, explica Caley.

Visão sociológica descortina sinais de pobreza

Trata-se de uma actividade que não deve ser encarada como natural, embora própria de uma sociedade com milhares de cidadãos que não conseguem o necessário para a sua sobrevivência. É desta forma que o sociólogo Flávio Kussessi começa a olhar para um fenómeno que “acarreta perigos”.

O académico diz que, numa sociedade normal, esta prática não é aceite, assim como o cidadão construir uma casa precária.

“Isto acontece porque o cidadão não consegue pagar a uma empresa para construir a sua casa. De igual modo, devo dizer que existem empresas credenciadas para a exploração e venda de inertes”, indicou o sociólogo, antes de ter reafirmado que os momentos de dificuldades são propensos a situações do género.

Ao recordar que “o Estado não faz a sua parte”, Flávio Kussessi sublinha que a sociedade está perante um “claro” indicador de pobreza, com famílias em desespero para a sua sobrevivência.

“O acesso ao emprego é bastante complicado para a franja semi-analfabeta, é algo elitista, daí o crescimento da actividade informal”, sustenta.

Confrontado com a taxa que as senhoras dizem pagar, semanalmente, a fiscais da Administração Municipal, mostrou-se surpreendido pela não emissão de recibos, argumentando que deveriam ser emitidos comprovativos de pagamento.

“Se assim for (cobrança de taxas), então a Administração autoriza, pelo que devemos conhecer a finalidade do dinheiro”, finaliza Kussessi.

Já o Gabinete Provincial da Acção Social, Família e Igualdade do Género, por intermédio de Odete José, explica que as mulheres envolvidas no negócio de areia e pedras, em vários pontos da província, não têm outro sustento.

“É difícil, realmente é”, resume a funcionária, que revela um trabalho do sector, na área da Mina, que consistiu em incentivar as senhoras a trocar a venda de brita pela confecção de sopa de abóbora e fabrico de sabão.

“Não podemos dar um trabalho mais leve a todas, mas temos a noção de que elas devem abraçar o empreendedorismo”, defende Odete José.